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Trecho do livro“Eu me lembrei de escrever estas recordações, há dois anos, quando, um dia, por acaso, agarrei um fascículo de uma revista nacional, esquecida sobre o sofá de minha sala humilde, pelo promotor público da comarca. Nela um dos seus colaboradores fazia multiplicadas considerações desfavoráveis à natureza da inteligência das pessoas do meu nascimento, notando a sua brilhante pujança nas primeiras idades, desmentida mais tarde, na madureza, com a fraqueza dos produtos, quando os havia, ou em regra geral, pela ausência deles. Li-o a primeira vez com ódio, tive desejos de rasgar as páginas e escrever algumas verrinas contra o autor. Considerei melhor e vi que verrinas nada adiantam, não destroem; se, acaso, conseguem afugentar, magoar o adversário, os argumentos deste ficam vivos, de pé. O melhor, pensei, seria opor argumentos a argumentos, pois se uns não destruíssem os outros, ficariam ambos face a face, à mão de adeptos de um e de outro partido. Com essa reflexão, que me animo a chamar de bom conselho e excelente inteligência, vieram-me recordações de minha vida, de toda ela, do meu nascimento, infância, puerícia e mocidade. Mentalmente comparei os meus extraordinários inícios nos mistérios das letras e das ciências e os prognósticos dos meus professores de então, com este meu triste e bastardo fim de escrivão de coletoria de uma localidade esquecida. Por instantes, dei razão ao autor do escrito. Cheio de melancolia, daquela melancolia nativa que me ensombra nas horas de alegria e mais me deprime nas de desalento, acendi nervosamente um cigarro, fui à janela, olhei um momento o rio a correr e me pus a analisar detidamente os fatos de meu passado, que me acabavam de passar pelos olhos. Verifiquei até o curso secundário, as minhas manifestações, quaisquer, de inteligência e trabalho, de desejos e ambições, tinham sido recebidas, senão com aplauso ou aprovação, ao menos como coisa justa e do meu direito; e que daí em diante, dês que me dispus a tomar na vida o lugar que me parecia ser de meu dever ocupar, não sei que hostilidade encontrei, não sei que estúpida má vontade veio ao meu encontro, que me fui abatendo, decaindo de mim mesmo, sentindo fugir-me toda aquela soma de ideias e crenças que me alentaram na minha adolescência e puerícia. Cri-me fora de minha sociedade, fora do agrupamento a que tacitamente eu concedia alguma coisa e que em troca me dava também alguma coisa. Não sei bem o que cri; mas achei tão cerrado o cipoal, tão intrincada a trama contra a qual me fui debater, que a representação da minha personalidade na minha consciência se fez outra, ou antes, esfacelou-se a que tinha construído. Fiquei como um grande paquete moderno cujos tubos da caldeira se houvessem rompido e deixado fugir o vapor que movia suas máquinas. E foram tantos os casos dos quais essa minha conclusão ressaltava, que resolvi narrar trechos de minha vida, sem reservas nem perífrases, para de algum modo mostrar ao tal autor do artigo que, sendo verdadeiras as suas observações, a sentença geral que tirava, não estava em nós, na nossa carne e no nosso sangue, mas fora de nós, na sociedade que nos cercava, as causas de tão feios fins de tão belos começos”.
Peso | 300 g |
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Dimensões | 21 × 14 × 1,56 cm |
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Editora Expressão Popular LTDA.
CNPJ: 03.048.166.0001-76
I.E.: 115.264.278.112
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